Translate

quinta-feira, 2 de março de 2017

DINHEIRO


O sistema neoliberal a que estamos sujeitos, assume cada vez mais o comando dos desígnios do mundo, condicionando profundamente a convivência da humanidade. Estamos perante uma realidade que já não busca somente a produção em massa de bens e serviços, mas centra-se cada vez mais num objetivo bem preciso: a acumulação obsessiva de riqueza material, a busca do dinheiro enquanto objetivo absoluto da existência. Deste modo faz tudo para libertar-se de qualquer controlo que possa deter a sua voracidade na busca do dinheiro, nem que para tal usem métodos criminosos para o atingir. O neoliberalismo luta por atingir sempre o topo, através de uma competitividade desmedida, assistimos a nova “seleção natural” em que apenas os “fortes” podem sobreviver (sendo estes os que melhor se adaptam à realidade), esta ação vem mesmo a colocar em causa as estratégias de cooperação solidárias ao nível mundial. 
Um sistema que com o seu poder económico, vive à margem de ideais políticos, sendo a própria ética uma palavra que não conhece, o foco é apenas um: o ganho. 
O interesse não reside  no desenvolvimento, o interesse apenas no lucro, no ganho, no poder à custa do dinheiro. O próprio sistema de produção ilimitado entra neste “joga”, assim através de campanhas extremamente agressivas leva a que as pessoas com a obsessão pelo “status” do ter, levando-as a entrar num caminho que finaliza levando-as para o precipício da dívida, ficando com os seus futuros hipotecados a sistemas que os fazem meios de atingir o alvo. 

Não estamos, somente, perante uma crise económico-financeira, a crise é da própria humanidade.

O dinheiro sempre influencio a civilização, a história é extremamente influenciada pela relação homem/dinheiro, assim, e através de um mundo globalizado, esta realidade aparece com uma força única, o dinheiro converteu-se definitivamente no maior ídolo da nova humanidade.

Muitas vezes se questiona, o porquê de as pessoas extremamente ricas, não perderem a ganância da busca por mais, a resposta é o medo. 
O dinheiro é visto como a “porta de salvação”, a garantia da própria existência e convivência num meio completamente conquistado pelo “aroma” do luxo e da estravagância desmedidos, uma realidade em que os afetos são confundidos com o interesse. É medo de sair desta realidade que faz que não consigam conter a ganância, chegando ao ponto em que a vida fica remetida às emoções momentâneas, vividas em palcos e meios deslumbrantes (a que muitos almejam). No entanto já não vivem nem usufruem da plena liberdade, a vida é inteiramente entregue ao “culto” do dinheiro, em que a especulação coloca-se em posição dominante perante a própria aposta no projeto produtivo. 
Chegamos a fim da linha em que o dinheiro deixou de ser um meio, passando a ser o próprio fim absoluto, não há mais nada além dele...

É interessante verificar, ao entrarmos numa instituição bancária, o facto de muitas pessoas fazerem um certo silencio, preferindo mesmo falar num tom mais baixo do que o normal, como se estivessem num “templo”. 

O dinheiro é exigente, não liberta a pessoa, torna-a refém da sua ganância, e nesta relação quase cultual, nada é posto de lado, nem tão pouco o valor da vida, e muito menos o sacrifício inocente.
Famílias desunem-se, pessoas cometem crimes, seres humanos são explorados, recursos naturais são destruídos, guerras são feitas, países são colocados em total humilhação e sujeição perante o grande “senhor do mundo”. 
Muitos daqueles que apoiam este sistema (neo)liberal, refutam as criticas alegando que este sistema tirou (como nunca) uma grande parte da população mundial da pobreza; sim isso é certo e não nego tal facto, no entanto questiono, seria esta a única via para tirar a população da pobreza?
Também não será este sistema extremamente volátil e ilusório, será que tem sido um meio sustentadamente justo?
Será que também o mesmo sistema não é causa para a miséria extrema em vários lugares?
Como é possível de uma expansão magnifica da tecnologia, não somos capazes de erradicar a fome do mundo, será que este sistema não tem nenhuma relação com isto?
Até que ponto a concorrência desenfriada, em vez de nos apelar à competência como ação para a humanidade, nos esta a tornar cada vez mais hedonistas, e centrados no nosso sucesso refletido em dinheiro?
Será este sistema nos fez mais solidários?
Será que não há outros caminhos alternativos?

Ao lermos o Evangelho somos confrontados com um Jesus que não seixa de ser extremamente critico perante um acumular de dinheiro egoísta, que não vê os outros. Este “jogo” do dinheiro tem acima de tudo uma componente psicológica que se sobrepõe à própria lógica racional, a inteligibilidade exata é trocada pela legibilidade pouco racional e totalmente obcecada. Existe uma notável distancia, do ponto de vista racional nesta realidade a que estamos confrontados, no que se refere à relação homem/dinheiro, já que o essencial reside unicamente no ganho, sem limites em que o tão apregoado mérito, é trocado pela esperteza em que os limites éticos são colocados num plano distante, senão mesmo irreconhecíveis.

Claro que o dinheiro não é em si mesmo um mal em si, mesmo através dele é-nos proporcionado atingir um bem e uma segurança indispensáveis para a vida. Na minha humilde opinião, o problema centra-se no uso que fazemos do dinheiro, e aí muitas vezes a relação pessoal com ele entra nos meandros do possessivo, em que a sua obtenção torna-se no “clímax” da existência. Isto reflete-se na sensação de prazer que provoca em muitos daqueles que entregam ao “jogo” da especulação, em que o ser humano fica preso ao “ícone sagrado” refletido no extrato da conta bancária.
Um prazer que se alcança na total entrega ao “ídolo”, que corrompe o homem tornando-o num animal faminto e voraz pelo ganho, e aí, não tenhamos duvidas, não existem limites ao uso de recursos para o obter. É importante ter bem presente a seguinte frase: 

O mesmo dinheiro que promete bem estar e qualidade de vida, causo de igual modo uma enormidade de sofrimento, pobreza e a desumanização de todos.

Cada vez mais a sociedade está organizada tendo apenas em conta o dinheiro, as divisões e subdivisões constantes das classes demostra que cada pessoa tem em si mesma um valor, não enquanto mérito de competência, não enquanto bondade, mas em dinheiro, esta é a verdade a que estamos todos sujeitos.
Magnificat, uma dos mais belos textos bíblicos, merece ser refletido profundamente...

“Maria disse, então:
«A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador.
Porque pôs os olhos na humanidade da sua serva.
De hoje em diante, me chamarão bem-aventurada todas as gerações.
O Todo-poderoso fez em mim maravilhas. 
Santo o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem.
Manifestou o poder do seu braço e dispensou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abrão e à sua descendência para sempre”.

A lógica do dinheiro rege-se no imperialismo dominador, ele não dá espaço a que os direitos  estejam fora do seu controlo. A crise está longe de ser momentânea, a crise reside nos critérios sobre os quais se está a construir a globalização. Nesta nova lógica a competitividade aparece como aquilo ao qual as relações se devem estabelecer, trocamos solidariedade por competitividade. Ao colocar-se o dinheiro no topo da pirâmide, introduziu-se uma fratura social global que se tem vindo a extremar! Seguir este ídolo obriga a descartar o pensamento ligado ao bem comum, os tais mercados não só ditam as suas imposições aos países (às pessoas), como também destroem a própria instituição democrática. Isto resulta  num alheamento da classe dirigente, sujeita à pressão dos poderosos, e ausente das realidades concretas dos necessitados. Neste neoliberalismo o ser humano não é o valor mais importante, a humanidade está a colocar-se como um meio para alimentar o ídolo dinheiro. 

“Ninguém pode servir a dois senhores: ou se gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um desprezar o outro. 
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro
(Mt 6,24)

“Nenhum servo pode servir a dois senhores; ou há-de aborrecer a um e amar o outro, ou dedicar-se a um e desprezar o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro
(Lc 16,13)

Nestas passagens (fonte “Q”, não aparecem em Mc) temos que prestar a atenção para o facto de termo – dinheiro – aparecer como o termo – “mamôn”-. Segundo estudiosos este termo liga-se ao verbo “Hemin”, de se liga a aceitação e a crer, aliás será mesmo a partir de “Hemin” que chegamos à expressão tão usada por nós: Amen. Nas mesmas passagens este aspecto é ainda reforçado com o “servir”, que na tradição bíblica prende-se a uma “praxis” cultual
A busca do dinheiro tem em, muitos casos, uma atitude de culto, uma total entrega ao seu poder. Esta relação é incompatível com a relação com Deus, é impossível prestar culto a Deus e ao dinheiro, não há como compatibilizar estas duas realidades. Aliás, e segundo os mesmos estudiosos, o uso da palavra “mamon” é colocada no texto numa posição similar a Deus, ficando patente (e acertadamente) que o ser humano ao entregar-se ao dinheiro, fá-lo numa atitude de total entrega e até submissão, sendo este o valor mais importante da existência humana. Não deixa de ser incrível que passados dois mil anos esta realidade continua não somente igual, mas reforçada! 

Deus não encarnou no meio da riqueza, Deus encarnou na humildade da pobreza, mesmo antes de nascer era recusado, mas mesmo assim encontraram guarida para o menino que vinha (cf. Lc, 2,7). É nesta profunda humildade que Deus se revela para resgatar o homem do sofrimento e apresentar-lhe o caminho da Salvação. Mas este projeto do Reino de Deus, requere a adesão de todos, em empenhamento no cumprimento da mensagem de Jesus. Um Reino de Deus que caminha para a comunhão enquanto realidade de vida (cf. Mt 13,31-32; Mt 4,30-32; Lc 13,18-19), aqui reside a vontade do Pai refletida na forma como tratamos o outro (cf. Jo 15,17), porque a riqueza de Deus não é o dinheiro, mas sim a criação e a valorização da vida. Olhar e seguir Deus Trinitário é incompatível com a busca da riqueza, enquanto a grande causa da existência humana. Deus ao tocar-nos, o nosso coração é tomado pelo fogo da sua presença (cf.Lc, 24,32) levando-nos a que olhemos para a existência como uma dádiva recebida, e enquanto dom leva-nos à resposta da doação, de vivermos desprendidos do exagero materialista, porque o que importante é a dignificação do dom, fazer da vida fonte de felicidade compartilhada, em que aquilo que é verdadeiramente caro é a vida do outro, não no querer egoísta mas na caridade empenhada e verdadeira. 
Com isto não se menospreza o mérito, nem a possibilidade de se alcançar mais, mas sim a forma de em que colocamos os méritos, não enquanto serviço para o bem comum, mas fechados no objetivo do acumular riqueza de uma forma cega, em que a idolatração do dinheiro apareça com a letra maiúscula, em que o “d” passe a “D”, tornando-se igual ou até maior do que o “D” de Deus.
Não é possível agradar a Deus e ao dinheiro...
Colocar o dinheiro na prioridade da nossa ação, fazemos dele um falso deus, e isto, mesmo na tradição bíblica é totalmente incompatível com Deus, vejamos como o profeta Elias se bateu contra os falsos deuses. 

Mais uma vez refiro, o problema não reside em ter dinheiro, meritória e justamente, o problema surge na forma como o usamos e para que o usamos, e aí, não sejamos ingénuos, perante o materialismo secular a que assistimos, com um consumismo extremo, em que se quer sempre mais e mais e mais..., poucos são aqueles que encaram a vida de uma forma desprendida e livre.

“... a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida que está fora das categorias de mercado. Para estas, se absolutalizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio e uma ordem social mais humana. Neste sentido animo os peritos financeiros e os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da antiguidade: “Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que aferrolhamos” *(S. João Crisóstomo, In Lazarum II, 6: Pg 48, 992D)
...

O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promove-los. Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e e a um regresso da economia e das finanças a uma ética propícia ao ser  humano” * (Evangelii gaudium, 57, 58).

terça-feira, 26 de julho de 2016

Combate à Fome: Justiça ou Caridade?



A responsabilidade pelo destino da civilização é o pilar essencial de toda a acção moral
da humanidade. Esta atitude concretizada, muitas vezes, na “mais simples atitude” de
nós próprios perante os problemas que nos vão surgindo no processo de vida, deverá ser
reportada para a consciência e discernimento numa atitude séria perante todos.
Fazer do outro lugar de encontro com Deus é, cada vez mais a maior interpelação feita a
cada um e à Igreja no seu conjunto. A revelação no amor ao próximo é a grande fonte
de humanização do mundo, porque no encontro com o outro fazemos o encontro com o
próprio Deus, porque com eles somos ligados à filiação divina. Daí que no outro para o
Outro, faz da vivência cristã lugar singular da expressão da gratuidade, do próprio
sentido de vida em verdade e caminho (cf. Jo 14,6) para uma vivência social enquanto
lugar de fraternidade, acolhimento, justiça e paz.
O flagelo da FOME atinge-nos na mais profunda vergonha do progresso humano. Lutar
contra a fome, embora seja sempre precedida do amor (“caris”), 
iga-se profundamente
à justiça elementar, já que coloca em causa o bem mais precioso: a Vida. Uma
sociedade que não se “bata” pela vida é uma caricatura dela mesma.
Deixarmos o nosso irmão cair no abismo da condição humana, em que muitas vezes
apenas lamentamos sem que nada façamos, é ausentarmo-nos da nossa condição cristã,
posicionando-nos na hipocrisia e omissão.

“Satisfaçam-se, antes demais, as exigências da justiça e não se ofereça como dom da
caridade aquilo que é devido a título de justiça” 
(Apostolicam actuositatem, 8)

“Quando damos aos indigentes o que lhes é necessário, não lhes ofertamos o que é nosso;
limitamos a restituir-lhes o lhes pertence. Mais do que praticar uma obra de misericórdia,
cumprimos um dever de justiça” 
(S. Gregório Magno, Regula pastorais)

Como sabemos na doutrina cristã -“dar de comer a quem tem fome”- aparece como das
obras fundamentais da misericórdia, condensando-se a caridade corporal e espiritual (cf.
CIC, 2447).
Na atualidade somos influenciados por hábitos utilitaristas e funcionais, em que a
própria condição humana é muitas vezes sobrevalorizada.
Infelizmente e com a difícil conjectura que atravessamos, muitos nossos irmãos estão
perante este drama, sendo que eles estão bem mais próximos de nós do que
imaginaríamos… Muitas vezes o “grito” de desespero é feito num silêncio perturbador,
em que a força e a esperança na vida começam a faltar. Esta atitude é compreensível, já
que a dignidade é totalmente posta em causa, colocando-se na mais profunda dor
(corporal e espiritual), em que a vergonha leva a que muitos vivam esta realidade numa
enorme solidão, à qual não podemos ficar imóveis.
Famílias estão a passar este drama, existindo mesmo casos em que famílias que
praticavam a ajuda aos necessitados são agora famílias, elas mesmas, necessitadas! Este
problema tem que ser prioridade cristã, nós somos o próximo, e o outro é próximo de
nós mesmos (cf. Lc 10,29-37). Somos parte actual da história da salvação, expressa
nessa relação entre Deus e o homem concretizada numa ligação de profundo e
misterioso amor abrangendo a globalidade da pessoa (cf. Jr 1,4-19).
A fome é a vergonha da condição TOTAL da humanidade, aqui se contém a profunda
falta do sentido ético/moral de toda a civilização, para que vale tantos avanços se não
avançamos na direcção do outro?! Colocarmo-nos na direção de Deus é estarmos com o
outro de uma forma total e disponível. Ao contrário daquilo que muitos pensam, a Igreja
está longe de estar eclipsada pelo secularismo “imperante” na atualidade. A atitude
cristã, enquanto fonte de caminho e de proposta concreta, merece de todos nós um
maior empenhamento. Remetermos a nossa crença apenas para os locais de culto, como
que escondida da nossa vivência diária, leva a que o exemplo e testemunho não passem
de palavras circunstanciais, é pois necessária uma abertura de espírito que abranja a
acção moral. A influência efetiva provém de uma ação concreta, num testemunho carnal
da nossa condição de testemunhas da Pascoa do Senhor.
Ter uma posição firme e corajosa perante este flagelo é uma obrigação, uma atitude de
justiça, de cada um e de toda a Igreja.
Não posso de deixar de referir aqueles que em várias organizações (religiosas ou não)
actuam perante este problema de uma forma de compromisso pessoal, mostrando o que
de mais belo tem o ser humano. Em muitas paróquias esta acção pastoral social de
urgência é feita por anónimos que a realizam em verdadeira dádiva, provida de uma
consciência de caridade, em que não impera “o que já não serve” mas “aquilo que
verdadeiramente é útil”, ou seja, as próprias pessoas.
A fome física solidifica-se numa fome espiritual, retirando ao ser humano a sua autoestima,
potencializando a revolta e o próprio desvio e marginalização social, e aqui os
mais frágeis são os que mais sofrem.
Viver na perspectiva cristã é encarar a vida em liberdade, com Ele caminhamos na Sua
direcção (cf. Lc 24, 13-35). É nesta relação entre Deus e o homem que se baseia toda a
moral cristã. O acolhimento tem que ser razão e motivo de resposta, numa atitude
realmente gratuita e comprometida (cf. 1 Cor 9,16). Em todos os olhos do homem
brilham a luz do amor de Deus.
Cristo mostrou-nos de uma forma única o excesso do amor por todos nós, criatura
amada e verdadeiro projecto de Deus. Logo a vida tem que ser lugar de proveito e
dignificação de todos. A comunhão de amor entre Pai, Filho e Espírito Santo, leva a que na
Santíssima Trindade se coloque a nossa devoção e contemplação, fazendo da ação cultual uma
busca de um Deus que reflete na mais profunda harmonia trinitária, em que o Seu reflexo e luz
se transcreve numa doação de uns aos outros, em serviço de uns pelos outros.

“Não é na forma ou no modo que uma pessoa fala com Deus, que eu vejo
que ela passou pelo fogo do Amor Divino, mas sim na forma como fala

comigo sobre as coisas terrenas”. 
(Simone Weil)

terça-feira, 1 de setembro de 2015

~O Silêncio de Deus ou o nosso silêncio a Deus?~

A vivência da fé leva-nos muitas vezes a contemplar a beleza, sentimo-nos envoltos por um sentimento que nos arrebata e para o qual não conseguimos explicar por palavras.

"A beleza das coisas existe no espírito de quem as contempla."
(David Hume)

“O belo é para contemplar. É da ordem do olhar, e não do tato. Uma cultura sem beleza e uma cultura sem contemplação; e uma cultura sem contemplação é uma cultura sem beleza.”
(D. António Marto)

No entanto esta busca pela beleza, e com ela uma abertura para a própria beleza do divino, não pode deixar de ficar profundamente inquieta perante as amarguras do mundo, perante enfim o “silêncio de Deus”. Aliás este “silêncio de Deus” é um dos maiores trunfos ateístas da atualidade, um Deus que nada faz perante a injustiça, a violência e a morte de inocentes. Todos esses males do mundo nos colocam inquietos, porque a esses que sofrem ninguém curou suas feridas, ninguém escutou os seus gritos, ninguém enxugou suas lágrimas... e a isto não se pode dizer: “Deus assim quis!!!”.

Viver “escondido” numa expressão de fé baseada fundamentalmente no culto (tão só) e nas atividades religiosas, leva-nos a estar como num casulo onde nos sentimos protegidos mas ausentes do mundo. Este distanciamento e inação perante os acontecimentos do mundo leva-nos à abstração do próprio sentido de Deus, muitas vezes não passamos de crentes de igreja, crentes de palavras e grupos, mas de pouca vivência cristã na vida comum do dia-a-dia, na nossa presença no mundo de hoje.

O tal “silêncio de Deus” é talvez o nosso silêncio, a nossa inação, a nossa falta de coragem.

O Senhor disse: “Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço na verdade, os seus sofrimentos”
(Ex. 3,7)

“Vai, reúne os anciãos de Israel...”
(Ex. 3,16)

A fragilidade humana não é fator que justifique a inação... nunca poderá ser.
Muitas vezes somos assombrados pela soberba de alguns, que fazem do medo e da incerteza a sua força, ainda mais nos dias de hoje em que a pós-modernidade é transportada para uma meta-modernidade em que começa e acaba no egoísmo, na ambição desmedida, em que até a “caridade” tem um preço ligado ao elogio e ao reconhecimento.

Seguir a Jesus é notar que a encarnação e a cruz são em si mesma a grandeza da manifestação do divino, que ao fazer-se carne assumiu a fragilidade humana ao mesmo tempo que mostrou a liberdade que se compreende para além da escuridão da morte, por Nele existe a Vida e a Vida está Nele.
Na emoção de Jesus face ao sofrimento (cf. Jo. 11,35), na sua “revolta” perante a injustiça (cf. Lc. 6,20), mostra a Sua incomensurável humanidade inscrita de na Sua pureza divina, porque (e como sempre afirmo) é a partir da humanidade de Jesus que compreendemos a sua própria divindade.

No mistério da encarnação somos engrandecidos pela aproximação de Deus à criatura amada, sem se impor pela força das armas, sem obrigar a nada, mas sugerindo o caminho e fazendo desse mesmo caminho o Seu exemplo externo. Tal como Moisés, Deus age pelos homens e os homens (caso assim pretendam) sabem como agir em prol da harmonia divina.

A Palavra Viva é viva se fizer verdadeiro sentido para a vida, na realidade passaram dois mil anos desde que Jesus esteve entre nós, o próprio conceito como Deus era visto naquela altura veio se alterando, no entanto continuamos a ser interpelados profundamente pela Palavra, e a pessoa de Jesus continua a inspirar muitos a fazerem do seu exemplo forma de vida.

Não projetemos um Reino de Deus para um futuro mais ou mesmos distante, porque o mundo é agora, este é o nosso tempo e é nele que temos de agir. Na nossa coragem e ternura com o mundo está refletida, aí sim a vontade de Deus, é perante as atitudes que o “silêncio de Deus” se torna audível, porque Ele está e acompanha-nos desde o início dos tempos. Nessa abertura ao Mundo e a Deus cultivamos uma espiritualidade onde entendemos, aí sim:

“A eficácia da Palavra manifesta-se nas suas obras e manifesta-se também na pregação. Ela não regressa a Deus sem ter produzido o seu efeito, mas aproveita a todos aqueles a quem é enviada (Is 55,11). Ela é «eficaz, mais afiada que uma espada de dois gumes» quando é recebida com fé e amor. Nada é impossível para quem crê, nada é difícil para quem ama. Quando as palavras de Deus ressoam, elas trespassam o coração do crente «como as flechas agudas de um guerreiro» (Sl 119,4). Entram nele como dardos e fixam-se nas suas profundezas mais íntimas. Sim, esta Palavra é mais afiada do que uma espada de dois gumes, porque é mais incisiva do que qualquer outra força ou qualquer poder, mais subtil do que qualquer habilidade do génio humano, mais penetrante do que qualquer reflexão sábia da palavra humana.” 

(Balduíno de Ford)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

~ João .... Deus fez Graça ~

João Batista, é sem dúvida uma figura fundamental na Escritura, ele faz a ponte entre o Antigo e Novo Testamento. Como profeta escatológico, a sua presença é marcada pela sua posição forte no que respeita ao arrependimento, ele é a “voz que grita do deserto” (Jo 1,23), o que prepara a vinda do Cordeiro de Deus.
O próprio Jesus terá feito parte do grupo de João seguindo-o junto ao rio Jordão, na zona do deserto, antes da Sua vida publica na Galileia; aliás será deste grupo que se “apresentarão” os primeiros discípulos (cf. Jo 1,35-51). Sem entrar nas questões ligadas a Jo 4,25 ss, João o Arauto do Deserto, tem na força da sua palavra a própria missão que o faz ser escolhido já no seio de sua mãe: 
a de mostrar Aquele ao qual não era digno de descalçaras sandálias (cf. Mt 3,11)

A sua importância, muitas vezes esquecida por entre sardinhas sangria, é tanta que, juntamente com Maria Santíssima é o único Santo que a liturgia da Igreja celebra o seu nascimento para o mundo, aliás notemos que no anúncio do anjo a Maria, também foi anunciado o nascimento de João:
“Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamam estéril, porque nada impossível a Deus” (Lc 1,36-38).

Aliás foi baseada nesta passagem de Lucas que a Igreja decidiu apontar o nascimento de João para junho, sendo que o de Jesus é em dezembro, ou seja, um seis meses um após o outro. No entanto esta decisão da Igreja prende-se também com os solstícios de Verão e Inverno, em que para além de se fazer uma oposição forte contra os cultos pagãos, tem também um significado mais profundo:
“Ele é que deve crescer e eu diminuir” (Jo 4, 30), dando-se assim uma ligação belíssima com o próprio ritmo do brilho dos dias.

Peçamos a S. João que faça de todos nós anunciantes da Boa Nova, não apenas enquanto palavras ditas, mas também fazendo da Palavra exemplo nas nossas vidas das maravilhas do Senhor.

"“Eu não sou o Messias, mas apenas o enviado à sua frente”. O esposo é aquele a quem pertence a esposa; mas o amigo do esposo, que está ao seu lado e o escuta, sente muita alegria com a voz do esposo. Pois esta é a minha alegria! E tornou-se completa”"

Que a Graça de Deus, ligado ao próprio nome João,
Esteja sempre presente voz,
Pax Christi.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

O Mercado Financeiro e a Economia da Escassez

O momento atual que atravessamos tem que ser encarado de frente e coragem, a crise não pode deixar de assumir uma posição de destaque nas causas cívicas de todos, todas as opiniões são validas, todas as reflexões não podem deixar de ser escutadas, mesmo que estas coloquem em causa ideias e dogmas pré estabelecidos, é que a realidade a que estamos confrontados provoca sofrimentos, muitas vezes irreparáveis, para a atualidade humana, para a pessoa enquanto inserido numa sociedade, mas também na sua condição individual.

A atualidade é comandada pela incerteza e até medo do futuro, a economia (neo)liberal tem colocado a exclusão e o desespero como um fato para o qual jamais podemos ficar indiferentes e “centrados” unicamente nos problemas individuais. Chega a ser assustador a indiferença com que vivemos perante o aumento da exclusão, esquecendo que esta não é um problema de um grupo em especial, mas de todos enquanto cidadãos. Muitas vezes quando alguém não se vê excluído age como um “sobrevivente” que facilmente “aprende” a conviver com “justificações” (que não passam de ilusões) em relação ao que lhe rodeia, as “justificações” pessoais, em que buscamos culpados que não nós mesmos, chegam, no meu ponto de vista, a ridicularizar o sofrimento dos outros, através de uma pseudo-ética que mais não é do que a manifestação da cobardia perante as nossas reais incapacidades de resistir à tentação do egoísmo narcisista de cada um.

A economia está cada vez mais reduzida à sua expressão financeira em substituição do fundamental que se centra na economia real. Para complicar ainda mais esta situação, a economia financeira está complemente descontrolada e extramente pouco normalizada a nível global.

“Ninguém pode servir a dois senhores: ou se gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um desprezar o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro
(Mt 6,24)

“Nenhum servo pode servir a dois senhores; ou há-de aborrecer a um e amar o outro, ou dedicar-se a um e desprezar o outro.
Não podeis servir a Deus e ao dinheiro
(Lc 16,13)

Nestas passagens (fonte “Q”, não aparecem em Mc) temos que prestar a atenção para o facto de que o termo – dinheiro – aparecer como o termo – “mamôn”-. Segundo estudiosos este termo liga-se ao verbo “Hemin”, que se liga a aceitação e a crer, aliás será mesmo a partir de “Hemin” que chegamos à expressão tão usada por nós: Amen. Nas mesmas passagens este aspecto é ainda reforçado com o “servir”, que na tradição bíblica prende-se a uma “praxis” cultual.


O dinheiro tronou-se na realidade a que toda a economia se converte, ele tornou-se na grande razão da felicidade humana, no entanto, nesta “felicidade” estão também conjugadas as maiores injustiças e os mais brutais sacrifícios.


O dinheiro em si mesmo não tem vida, no entanto à volta desta realidade inanimada se tem construído toda a realidade imanente. A velha questão – “o dinheiro tronou-se no fim e não no meio para atingir um fim – está bem presente, ele é quase o elemento fundamental e escatológico da vida humana, sobre ele recaem os sucessos e insucessos das relações interpessoais, da própria autoestima individual e até mesmo do próprio conceito de felicidade. Embora muitos digam o contrário, na verdade sobre o dinheiro assentam ideais e formas de viver em sociedade, o dinheiro é, que queiramos quer não, o grande e central objetivo da pessoa.



Nós cristãos, do “alto” da nossa moral, esquecemos com extrema facilidade de que Deus não encarnou no meio da riqueza, Deus encarnou na humildade da pobreza, mesmo antes de nascer era recusado, mas mesmo assim encontraram guarida para o menino que vinha (cf. Lc, 2,7). É nesta profunda humildade que Deus se revela para resgatar o homem do sofrimento e apresentar-lhe o caminho da Salvação. Mas este projeto do Reino de Deus, requere a adesão de todos, em empenhamento no cumprimento da mensagem de Jesus. Um Reino de Deus que caminha para a comunhão enquanto realidade de vida (cf. Mt 13,31-32; Mt 4,30-32; Lc 13,18-19), aqui reside a vontade do Pai refletida na forma como tratamos o outro (cf. Jo 15,17), porque a riqueza de Deus não é o dinheiro, mas sim a criação e a valorização da vida. Olhar e seguir o Deus Trinitário é incompatível com a busca da riqueza, enquanto a grande causa da existência humana. Deus ao tocar-nos, faz com que o nosso coração seja tomado pelo fogo da Sua presença (cf.Lc, 24,32) levando-nos a que olhemos para a existência como uma dádiva recebida; e enquanto dom leva-nos à resposta da doação, de vivermos desprendidos do exagero materialista, porque o que importante é a dignificação do dom, fazer da vida fonte de felicidade compartilhada, em que aquilo que é verdadeiramente caro é a vida do outro, não no querer egoísta mas na caridade empenhada e verdadeira.
Com isto não se menospreza o mérito, nem a possibilidade de se alcançar mais, mas sim a forma nos colocamos nos méritos, não enquanto serviço para o bem comum, mas fechados no objetivo do acumular riqueza de uma forma cega, em que o ídolo dinheiro apareça com a letra maiúscula, em que o “d” passe a “D”, tornando-se igual ou até maior do que o “D” de Deus.
Não é possível agradar a Deus e ao dinheiro...
Colocar o dinheiro na prioridade da nossa ação, fazemos dele um falso deus, e isto, mesmo na tradição bíblica é totalmente incompatível com Deus, vejamos como o profeta Elias se bateu contra os falsos deuses.

Daí que a minha opinião, valendo o que vale, é a forma como vejo o que me rodeia e perante o qual não posso estar em silêncio...

É importante salientar que as finanças em si mesmos não criam nem a morte nem a usura, no entanto ao não funcionarem para o que lhes está destinado (financiamento  de projetos , empresas, etc.) elas podem trazer consigo essas duas terríveis noções. As finanças ao “jogarem” com o tempo, apontam para um futuro, originam uma espectativa. O mercado financeiro através da especialização em conjugação  com o exagerado numero de produtos ganhou uma vida própria; assim quem investe quase sempre não sabe realmente onde está a investir, sendo mesmo que quem vende também não tem conhecimento total da complexidade do que está por trás desse produto, a informação é cada vez mais vasta e especializada. Assim sendo criou-se um terreno fértil para a especulação, criam-se expectativas (muitas vezes infundadas), com resultados seguros (ilusões), a isto se soma o fato que que quem nos informação (vendedor), ao contrário do que acreditamos, muitas vezes não tem conhecimento da complexidade do que está a propor...
Ao colocarmos dinheiro numa aplicação financeira num qualquer banco, não sabemos (comprador e vendedor) onde é realmente aplicado o nosso dinheiro (poupança), e com isso o risco torna-se algo de incerto, confiamos na mais valia possível, mas desconhecemos a possível perda associada.

Os mercados, os tão “conhecidos” mercados, baseados em práticas especulativas não são “monstros desconhecidos”, os mercados são financiados por todos nós, os mercados somos todos nós.
Quem investe o seu dinheiro numa aplicação, faz o investimento tendo na expectativa um retorno que muitas vezes lhe é dado a conhecer, no entanto o risco é omitido... assim ao entramos neste tipo de mercado, passamos uma “carta branca” para que exista um trabalho (nem que seja especulativo) para que se obtenha o maior retorno possível.

O problema é que os ativos financeiros se desdobram noutros ativos financeiros. Estes ativos (derivados) entram numa teia cada vez mais complexa e nem sempre controlável, já que a globalização faz com que se dispersem em cadeia... Temos de ter a consciência de que não temos nunca como saber onde todo o capital está aplicado, nem muito menos em que economia real ele se reflete. Investimos na pura lógica da especulação financeira, numa realidade abstrata e complexa, em que só olhamos para o resultado final do ganho e mais nada (!), partido do pressuposto de que quem aplica por nós tenha ética e uma postura correta na negociação.
Esta assimetria de informação, se usada de forma abusiva, leva à criação artificial de valor, o que infelizmente tem vindo a acontecer muitas vezes.

Não tenhamos duvidas: os mercados somos nós mesmos. Desta forma só nós podemos alterar a realidade onde estamos inseridos e nunca o contrário. Financiar um modelo que tem levado ao desespero de uns e à riqueza extrema de outros, não pode deixar de nos inquietar.

Toda a economia é baseada na ideia da escassez, no entanto não se reflete de uma forma clara para o problema da distribuição do excedente. Na economia moderna, é quase um pecado falar de excedente. Daí que a escassez faça de sentimentos como castigo, expiação e sacrifício como fatalidades dos tempos atuais. Talvez não seja negativo olharmos para o excedente e a forma como este se reparte pela sociedade (pelas pessoas).

“Olhai, guardai-vos de toda a ganância, porque, mesmo que um homem viva na abundância, a sua vida não depende dos seus bens”
(Lc 12,15)


Gostaria de vos deixar com esta passagem:

“Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e, cheio de misericórdia para com ela corou os seus enfermos. Ao entardecer os discípulos aproximaram-se dele e disseram-lhe:
“Este sítio é deserto e a hora já vai avançada. Manda embora a multidão, para que possa ir às aldeias comprar alimento.”
Mas Jesus disse-lhes:
“Não é preciso que eles vão; dai-lhes vós mesmos de comer”
Responderam:
“Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes.”
“Trazei-mos cá.” – disse Ele.
E depois de ordenar à multidão que se sentasse na relva, tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu e pronunciou a bênção; partiu, depois, os pães e deu-os aos discípulos, e estes distribuíram-nos pela multidão. Todos comeram e ficaram saciados; e, com o que sobejou, encheram doze cestos. Ora, os que comeram eram uns cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças”
(Mt 14,14-21)